Sai
de casa bem cedo e caminhei lentamente ate o ponto de ônibus. Eram três paradas
até chegar na minha tenda que ficava no centro da cidade.
Já acomodada no banco (hoje consegui sentar) encosto
minha cabeça no vidro da janela e com os olhos fechados me reporto ao dia
anterior.
Tantas
pessoas com uma dor diferente! Uns procurando auxilio para trazer a pessoa
amada de volta, outros para arranjar um emprego e outros até para sarar a dor
de barriga do filho.E era “reza” e pedido de tudo quanto é jeito.
De
súbito uma lembrança que me atemoriza os sentidos!
Quando
no final do dia, corpo cansado, já
pensando nos três ônibus que me levariam de volta pra casa, na jantinha junto
com meu Zé, e no aconcehego do sofá pra ver a novelinhas das 9, levantei os
olhos e me deparei com aquele homem olhando diretamente dentro dos meus!
O
que ele queria?
Mal
tive tempo para pensar e ele me perguntou:
-
Dona, a senhora sabe curar a dor na alma?
Olhei
espantada e tentando entender o que se passava, respondi:
-
O senhor tem alguma preocupação?
-Não,
eu so sinto uma dor!
-Desculpa
moço, eu acho que o senhor deve procurar um medico. Essa dor eu não sei curar
não....eu só dou conselhos que me sopram nos ouvidos...
Mas
ele insistiu em me olhar fixamente!
-Não
encontrei o remédio, Dona, por isso vim aqui, pra senhora me ajudar!
-Desculpa
moço, por favor, eu não sei como lhe ajudar
E
mantendo o meu olhar fixo no dele, senti um arrepio percorrer por todo o meu
corpo!
Aquele
homem me dava medo, parecia que tinha um buraco escuro dentro dele tamanha era
a solidão que eu via dentro de sua alma!
Que
dor era aquela que medico nenhum tinha o remédio?
E
eu, na minha humilde e insuportável ignorância, que só sabia fazer rezar não
podia encontrar a palavra certa para dizer a ele eu não tinha remédio para ele.
-
Tudo bem Dona?!??
-Adelaide!
Pode me chamar pelo nome.
-Tudo bem Adelaide, a senhora pode pensar num
remédio para minha dor? Eu posso voltar amanha?
-
Moço, eu já disse , eu não sei tratar dessa dor! Quem sabe o senhor não procura
ajuda de algum centro....por favor, eu preciso ir....
Ele
entao olhou lentamente para mim, se virou e foi embora....
-Dona,
dona....seu ponto chegou......
Me
virei para ver de onde vinha esta voz e percebi que o tempo voou dentro daquele
ônibus. Desci e caminhei vagarosamente para a minha tenda.
continua...
Meu
coração gelou.
Ele
estava ali, parado em frente a minha
tenda!
Fechei
a lona com as duas mãos e fiquei ali parada segurando e tentando encontrar um
jeito de fugir daquele homem que insistia em sair dali comigo.
Olhei
desesperada porque não tinha pra onde correr....pensei, então, que por algum milagre divino, o chão pudesse
se abrir e eu sumiria pra dentro dele.
Impossível, precisava pensar em outra saída....
E
cadê o Zé que justo hoje resolveu atrasar???? Maldito Zé! Quem disse um dia que
ele era um santo? Pois sim! Que de santo ele não tinha era nada!
Devia
estar em algum boteco enroscado com alguma nega que sabia sambar. Porque aquele
lá? Não podia ver um quadril requebrando que ele se achegava e não largava
mais...Não fazia por mal, eu sei, era o maldito samba na veia!
Nunca
que eu tivesse sabido que ele algum dia havia me traído com outra mulher, isso
todo mundo podia jurar, mas com o samba? Ah com o samba foram infinitamente
tantas vezes que eu até perdi a conta.
Era
a cara dele fazer aquilo comigo!
Me
deixar esperando eternamente por ele e o pior é que ele sabia que eu ia estar
ali...
Mas
justo naquela noite ele tinha que se atrasar? E eu...porque não me adiantei pra
fechar a tenda mais cedo? Ai essa mania de fazer tudo certinho ....de achar que
sempre vai chegar mais um e sairia mais doente ainda por ver a tenda fechada?
Um
dia eu ainda largo ele!
Só
Deus pra ter misericórdia dessa alma!
Alma?
O
homem....parado ali do lado de fora....estava tão perto que eu podia ouvir a
respiração dele por detrás da lona. E a minha....será que ele também estava
ouvindo? Meu coração batia tanto que achei que tivesse que sair dali com ele na
mão....
O
que eu podia fazer?
Os
minutos se arrastavam intermináveis e eu até pensei em fingir que não estava
mais ali.
Mas
ele sabia que eu estava!....e com a certeza absoluta de que eu podia curar
a dor da sua alma.
-
Adelaide?
O
que eu que eu faço? Minha Santinha Edevirges, o que eu faço? Se o Zé não chega
vou ter que sair andando por essas ruas de São Paulo com um homem que quer
curar a dor da sua alma! A minha experiência é aqui dentro...dentro da minha
humilde tenda onde eu sou a rainha...
Mas
La fora???? Naquele mundão de Meu Deus???? Eu fico tremendo só de pensar no que
pode acontecer!
E
ali...na minha aflição que já parecia durar uma eternidade, eu entendi a “dor
de alma” daquele homem que a semana inteira veio na minha tenda a procura de
remédio.....
A
dor que ele sentia era a dor de quem estava só...
Soltei
a lona devagar, minhas mãos estavam molhadas, todo meu corpo estava
molhado....parecia que a tempestade do dia anterior estava saindo de dentro de
mim....
A
sombra daquele homem na lona....voltei para dentro da tenda , peguei uma fita
K-7 do Vando.....e quando me virei para, enfim, sair com aquele homem e ajudar
a curar a sua dor, ele já havia ido embora....deixando a sua solidão dentro de
mim!.....
Naquela
noite, talvez por uma brincadeira ou ironia do destino, o Zé não veio....
No
céu, quase que sombrio, as estrelas cintilavam acanhadas....
Um
vento gelado bateu em mim e eu senti um arrepio percorrer todo o meu corpo!
Na
eqüina, via o dono do boteco me olhar, como quem me dizia, vem.....
Entrei,
pedi uma cerveja , dei a K-7 do Vando pro dono bar colocar no toca fitas e
ali....sentada num canto de mesa de um bar lotado....eu percebi...o quanto
estava sozinha....
Na
minha cabeça, uma pergunta....será que aquele homem voltaria????
(continua...
(continua...
“
Moça...me espere amanhã....
Levo
o meu coração ...pronto pra te entregar....
Moça
....moça eu te prometo...eu me viro do avesso
So
pra te abraçar...”
Que desgraça de musica brega é essa que me faz
congelar só de pensar?
Um arrepio percorreu por todo o meu corpo.....e a
imagem daquele homem ainda atordoava a minha cabeça......chapéu meio de
lado....olhar zombeteiro e um sorriso no canto dos lábios....
Na mesa......algumas garrafas de cerveja e um
cinzeiro cheio de bitucas de cigarro......as pernas dormentes.....e uma
tristeza tão grande que me impedia de agüentar com meu próprio corpo...
pesada??? Talvez....
Quanto tempo havia se passado? Talvez duas, três,
quatro horas????
Porque parecia ser uma eternidade????
Porque o tempo não passava como todos os dias?
De longe eu olhava a minha tenda.....o vento fazia
a lona balançar....e novamente um arrepio percorreu pelo meu corpo.....
Será que ele voltaria?
Será que viria para me dizer que dor era aquela que
ele enfiou dentro de mim?
Já não havia mais ninguém na praça.......o bar
estava fechando e eu tinha que sair dali....voltar pra minha tenda.....porque
naquela noite eu não conseguiria voltar pra casa...
Abri a lona e entrei.....parecia que eu era a única
sobrevivente depois de um terremoto.....tudo bagunçado.....minha cabeça que não
parava de pensar...
Sabia que precisava dormir um pouco e quem
sabe...em meus sonhos eu não recolocaria tudo no lugar.....Então me deitei ali
mesmo no chão e adormeci......
- Adelaide?
- Sim......
- Vc ainda está ai?
- estou...
- Isso é um sonho?
- Não....
- Então porque não sinto mais a dor dentro de
mim???
- Talvez seja porque ela nunca tenha existido...
- É....pode ser...
- Posso te perguntar uma coisa?
- pode...
- Porque vc se esconde de mim?
De novo o arrepio....dessa vez daqueles que
congelam até a alma.....
- Eu não me escondo de vc....eu só não preciso de
mais problemas na minha vda....
- eu sou um problema na sua vida? Mas vc mal me
conhece...
- Por isso mesmo....se te conhecesse ia saber como
me defender de vc!
- Tem medo de mim?
- Não....
- Então...
- Tenho de mim.....Olha moço....vc entrou na minha
tenda.....pra curar a sua alma e levou a minha
pras profundezas do inferno que nem toda a reza do mundo vai poder
trazer ela de volta....
- Eu não entendo.....não quero te fazer mal....
- Moço...o senhor não me fez mal nenhum......agora
por favor....pode ir embora????
-Assim????
- Assim como, moço???
- Sem vc me dizer o que fazer?
Eu olhei pra ele.....por um instante vi meus olhos
dentro dos seus....o tempo parou.....tudo estava quieto....nada se
ouvia.....nada......só as batidas do meu coração.....e as do dele.....como num
só compasso....e nós ficamos ali.....só nós dois e o nosso coração batendo
junto....
Por quanto tempo??? Não sei.....Um raio de sol
refletiu em meu rosto...me sentei confusa....o corpo doendo....a cabeça
rodando.....aquela dor....a noite
anterior......o vazio......o nada!.....
Fechei os olhos......pra reconstruir minhas
lembranças....
Só me lembro do seu sorriso...e da sua voz dizendo
que eu tinha prendido a alma dele na minha......
continua.....
Um comentário:
Que profundo, ótima leitura... me senti em uma viagem, entrei dentro do texto! parabéns!!!!
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